04/10/08

A escravatura não acabou: travestiu-se

"Na segunda-feira votei pelos americanos. Hoje [ontem] votei com a minha mão no peito pelo meu país porque as coisas estão mesmo más e não temos outra hipótese. Estamos sem opções e encostados à parede." Esta frase pertence a um dos vários membros da Câmara dos Representantes que se opuseram ao plano Bush, na primeira votação, e que ajudaram à sua aprovação, ontem, por 263 votos a favor e 171 contra.

Endividamento sem controlo
Segundo o The New York Times, nesse encontro foi aprovado por unanimidade o fim da regra que limitava os montantes de endividamento que podiam assumir as unidades de corretagem desses bancos. Desta forma, foram libertados milhares de milhões de dólares "parqueados" para fazer face a eventuais perdas sofridas por decisões de investimento. Essas reservas foram, então, utilizadas pelos bancos para procurar rentabilizar o ressurgimento das bolsas ou o boom imobiliário. Foi esse dinheiro que acabou por entrar no mercado de crédito hipotecário de alto risco (subprime) e transformar-se em produtos estruturados vendidos, posteriormente, em todo o mundo. E que, depois do colapso do subprime, acabou por obrigar à criação do plano de 700 mil milhões de dólares com vista a "limpar" esses activos tóxicos. Como é que a SEC permitiu que os bancos se "alavancassem" ao ponto de deverem mais de 30 dólares por cada dólar que detinham na realidade? O "negócio" dava uma contrapartida à entidade reguladora: acesso livre aos modelos de risco implementados pelos próprios bancos. No entanto, esse plano teve dois problemas: os modelos de risco estavam desactualizados; e a divisão da SEC responsável por fazer a supervisão dos riscos do investimento dos bancos nunca foi devidamente activada. Resultado: os bancos ficaram à solta para tomar as decisões de investimento que entenderam, sem adequarem os montantes do seu endividamento à capacidade de os cobrirem em caso de perdas. Durante esse período, os cinco bancos acumularam activos no valor total de quatro triliões de dólares (2,9 biliões de euros).
Decisão quase 'secreta'
No momento da decisão, as poucas vozes que criticaram a anulação da obrigatoriedade de adequação das dívidas ao capital dos bancos foram ignoradas. Na imprensa norte-americana não houve um único artigo sobre o tema. "Fomos ingénuos ao acreditar que as empresas tinham uma forte cultura de autopreservação e responsabilidade e seriam disciplinadas no seu excessivo endividamento", explicou ao NY Times um professor de contabilidade da Universidade de Duke, James D. Cox. "Aprendemos todos uma lição terrível", acrescentou. Há uma semana, o actual líder da SEC, Christopher Cox, anunciou o fim do programa de 2004, reconhecendo a incapacidade da regulação para travar a iminente falência dos cinco bancos. Uma decisão tomada poucos dias depois de o candidato republicano, John McCain, ter exigido a sua demissão. DN

"Por cada cidadão americano está em jogo um cheque de 2300 dólares. É muito dinheiro e é natural que os cidadãos olhem para o pacote Paulson como um pára-quedas de ouro para pagar a irresponsabilidade dos altos executivos de Wall Street."
Armando Esteves Pereira, "Correio da Manhã", 4 de Outubro de 2008


As nossas poupanças nunca estão seguras com este sistema económico capitalista. Existe uma enorme hipocrisia politico-económica: as ideologias governativas impõem um modelo económico capitalista neoliberal, suportadas pelos grupos financeiros e empresariais, com o argumento que é o melhor sistema para produzir riqueza e melhorar a qualidade de vida dos cidadãos. Este modelo impõe a privatização dos actos económicos, sem regulação, preconizando uma maior obtenção de lucros. Contudo, os lucros são privados, mas os prejuízos são públicos.

Ou seja, este capitalismo é como um menino mimado com pai milionário, que quer usufruir do património parental a seu bel-prazer sem prestar contas e que quando se vê afundado nos devaneios em que se envolveu, obriga o pai a pagar os prejuízos sem este ter direito a tugir ou a mugir, com a chantagem de que se não for salvo, trará para casa um mau ambiente quotidiano…

Os banqueiros, correctores, grupos empresariais, comportam-se como meninos mimados cujo pai estatal está sempre disponível para cobrir os seus devaneios, ganância e mordomias. E este pai estatal está disponível porque a classe politica está dependente dos meninos mimados para se manter no poder, gerando-se uma promiscuidade irreversível. O orçamento de Estado é um bolo apetecível, porque é confeccionado sem esforço e obtém os ingredientes coercivamente (obrigando todos os cidadãos a pagar); e é este bolo que verdadeiramente sustenta as supostas empresas privadas.
A hipocrisia atinge laivos de irracionalidade, porque defende um sistema capitalista neoliberal, mas nos momentos de aperto recorre-se ao ostracizado sistema comunista, usando-se o procedimento típico da nacionalização. Se o comunismo foi um evidente fiasco como modelo económico, o capitalismo mostrou resultados idênticos, continuando a existirem desigualdades imorais e pobreza inaceitável.
Ironicamente, o país modelo do capitalismo neoliberal, inimigo fidagal do comunismo, recorre a este sistema para salvar o país da desgraça financeira, com a agravante de que é um governante que pertence aos quadros de uma correctora (as responsáveis por esta crise) que propõe que lhe paguem as asneiras que praticou…

Esta crise vem comprovar que este capitalismo é uma falácia, que só serve para manter o satus quo dos grandes grupos económicos, e que escraviza os cidadãos porque são estes que sustentam o sistema com o seu trabalho. Paradoxalmente, são os indivíduos que fazem má gestão que arrastam todos os outros, independentemente destes terem pautado a sua vida com uma gestão moderada e racional. Veja-se o exemplo de 1929 ou da Argentina em 2001, em que os excessos de alguns destruíram a boa gestão de muitos, perdendo-se poupanças de uma vida inteira. Isto é, quem poupa nunca está a salvo, porque basta existir quem não se preocupe em poupar mas somente em consumir hedonisticamente, que quando deixar de pagar afecta todos os outros que não optaram por essa via.
É este o modelo económico que se globalizou…

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