28/12/08

Qualificações para quê?

Aos 32 anos, sofre de um mestrado e está quase a apanhar um doutoramento. Factores nada favoráveis ao mercado de trabalho, descobriu Susana Alarico, investigadora em Coimbra. "Arriscou" constituir família e ainda não recuperou do susto. Uma série a partir de hoje no P2, com portugueses em vários pontos do país a olhar a crise. Por Graça Barbosa Ribeiro - PÚBLICO

Num placard do Laboratório de Microbiologia da Universidade de Coimbra, os avisos e outros documentos institucionais convivem com a fotografia de uma criança e com um cartoon. O cartoon representa um mendigo que pede esmola queixando-se: "Sofro de grande licenciatura, mestrado e ainda apanhei um doutoramento no estrangeiro." A foto é de Gabriel, um bebé. "É o meu filho", aponta Susana Alarico com um sorriso, sem abrandar o passo determinado com que percorre o labirinto de divisórias falsas que espartilhou o espaço, outrora amplo, do edifício.
Não foi Susana quem ali dispôs as fotocópias. Mas a imagem que surge no placard parece concebida para ilustrar a situação da investigadora de 32 anos de idade, que decidiu "não adiar a vida" e ainda não recuperou do susto.
Investigadora na área da microbiologia, quase doutorada, com sete publicações em revistas científicas internacionais, achou que podia arriscar ter um filho. E foi por pouco que não acabou o ano a trabalhar numa loja de roupa, para o poder sustentar. Desde Maio que procurava emprego e só há menos de duas semanas soube que conseguiu uma bolsa de pós-doutoramento. "A resposta chegou no limite dos limites - tinha de ganhar dinheiro", explica.
Susana entra num gabinete acanhado e, com naturalidade, apresenta o marido. Conta que foi ali, no laboratório de microbiologia, que conheceu Igor Tiago, também bolseiro. Ainda construíam as suas carreiras, vivendo com as parcas bolsas de investigadores (de 750 euros cada), quando decidiram não esperar "pelas condições ideais" para constituir família. Em 2004 pediram um empréstimo e compraram casa própria, em 2005 casaram e a 23 de Novembro do ano passado tornaram-se pais de Gabriel.
"A verdade é que somos privilegiados, temos o apoio dos nossos pais e decidimos não adiar a nossa vida. Arriscámos!", explica Susana.
Igor sublinha a excepção: "A maior parte dos nossos amigos não pode fazer isto. Andam com o relógio biológico aos saltos, mas têm de o ignorar..."



Não há lugar para nós


Não se pode dizer que o risco tenha sido rigorosamente calculado. Quando Gabriel nasceu, estavam ambos com bolsas de doutoramento, cada uma no valor de 950 euros. Mas, em Maio deste ano, Susana ainda estava escrever a tese (que vai defender em 2009), quando a sua bolsa acabou. Estava previsto, não entrou em pânico. Afinal, bastava arranjar um emprego, pensou. Mas não foi assim tão fácil.
Em pé, junto a uma das secretárias que enchem o gabinete, Igor acompanha a conversa. Susana descreve em tom sereno a surpresa e o susto com que, dia após dia, folheou os jornais na inútil busca de uma oferta de emprego que se lhe adequasse. Igor interrompe-a, impaciente: "Brutal... É brutal quando percebemos que, depois de toda a formação e experiência acumuladas, não há lugar para nós no mercado de trabalho".
Ficaram indignados com as palavras do ministro Mariano Gago, que se congratulou com o facto de Portugal ser o país europeu onde a investigação científica mais cresceu, entre 2005 e 2007. "Fala de percentagens, de números... É só isso que este Governo vê? E as pessoas?", exclama Susana Alarico.
Quando diz "pessoas" refere-se, antes de mais, àqueles que fazem ciência. As da sua geração, protesta, vivem "com bolsas que não são actualizadas desde 2001, sem subsídios de férias, de Natal e de desemprego e sem perspectivas de futuro. "Pior", acrescenta Igor: "Em Portugal não merecemos qualquer reconhecimento por parte da sociedade, que nos considera parasitas. E eu pergunto: se nós não fizermos ciência, quem a vai fazer?".
Susana Alarico diz que a consciência de que a crise afecta toda a gente tem sido crescente. "É assustador. Só penso: o que é que vai ser de nós, de todos nós, quando, num momento em que já não sabemos como apertar mais o cinto, nos dizem que o que aí vem ainda é pior?"
No seu caso, os airbags familiares funcionaram. Os pais dela começaram a pagar-lhes o empréstimo da casa, os dele ajudam de outras formas. Mas ambos se sentem desconfortáveis com a situação.
Tomaram medidas. Abdicaram das férias e dedicaram-se à exploração das marcas brancas no mundo dos super e hipermercados; não renovam os guarda-roupas; almoçam sempre nas cantinas; fazem o jantar em casa, todos os dias; não saem à noite; prescindiram de todos os pequenos luxos; decidiram não dar presentes de Natal a ninguém. Nem ao Gabriel? "O Gabriel só tem um ano. Não vai sentir falta de um presente", diz Susana. Parece triste. Que não, que não está: "Há muita gente bem pior do que nós".



Um "clima" contagioso


Ela própria alerta que "é preciso ter cuidado", que "a crise não pode servir de cobertura a tudo". Mas admite que, quando soube que partiram o vidro do carro e roubaram a carteira a uma amiga, enquanto ela deixava o filho na creche, não conseguiu deixar de pensar: "Será alguém que não tem dinheiro para comprar um presente de Natal a um filho?".
Preocupam-na os casos de pobreza - este ano, por exemplo, foi ainda mais generosa do que é costume ao participar na campanha do Banco Alimentar contra a Fome. Mas também as consequências, para o país, "do desânimo e da revolta da generalidade das pessoas".
"Face às dificuldades, adaptamo-nos, mudamos o estilo de vida, o que é que havemos de fazer? Mas há uma tristeza, uma tensão, que se reflecte em tudo o que cada um de nós faz: na maneira como os professores ensinam, na forma como os médicos atendem os doentes", exemplifica. Custa-lhe, especialmente, que "este clima" alastre às crianças e aos adolescentes, como uma doença.
Susana nasceu e cresceu à solta no Tramagal, uma vila do concelho de Abrantes. Com a irmã, que morreu há cinco anos, e outros amigos, partia em debandada pela manhã e só regressava quando o sol se punha. Hoje, diz, tem a certeza de que o seu filho não terá uma infância tão livre e cheia de aventuras porque, entretanto, "a sensação de segurança desapareceu".
Também a aflige que Gabriel possa não vir a sentir-se tão confiante em relação ao futuro quanto ela se sentia quando fez o secundário, em Abrantes, ou ingressou em Biologia, em Aveiro. "Éramos ambiciosos e guiados por exemplos de sucesso. Acreditávamos que, se nos esforçássemos, alcançávamos o que queríamos". Faz uma pausa, como se a conclusão a espantasse: "E agora? Como é que os jovens hão-de ter incentivo para estudar e trabalhar se os exemplos somos nós?..."

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