14/12/08

Um retrato fiel da sociedade actual

O catastrófico cenário da extinção da morte, num dia de Ano Novo, é a base da intriga de 'As Intermitências da Morte', provavelmente o mais bem-humorado dos romances de José Saramago. As pessoas deixam subitamente de morrer, o que origina uma crise sem precedentes. "Brutalmente desprovidas da matéria-prima", as empresas do negócio funerário reuniram-se em assembleia geral e elaboraram um caderno reivindicativo. Para evitar o despedimento de milhares de trabalhadores", exigem duas coisas. Em primeiro lugar, que o Governo lhes arranje, por decreto, um novo negócio, tornando obrigatório o enterro ou a incineração de todos os animais domésticos falecidos - e esses preparos terão de ser contratados à indústria funerária. Em segundo lugar, pedem dinheiro - uma linha de crédito bonificado e empréstimos a fundo perdido -, pois a reconversão para os irracionais de uma indústria até então orientada para os racionais carece de vultuosos investimentos em equipamentos e know-how.
Saramago resumiu magistralmente a alma e manha de uma classe de patrões e gestores portugueses que têm uma visão muito particular dos negócios: os lucros, o Mercedes e os salários de cinco ou seis dígitos ficam por sua conta; o risco fica por conta do Estado (ou seja, de todos nós, contribuintes).
Cavaco Silva concorda com a análise de Saramago e já denunciou "a falta de autonomia revelada por alguns dos nossos empresários, que fazem depender o seu sucesso da permuta de favores com o poder político, e a sua tendência para viverem encostados ao Estado, que tem sido muito nociva para a nossa economia".
Jorge Fiel - Jornalista (DN)

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